Iniciada na fotografia, Letícia Lampert vem progressivamente se voltando para o elemento tridimensional. O principal elemento de pesquisa de sua poética é a cidade, que, sendo resultado de construção, nos apresenta uma sucessão de matérias e texturas. Falar sobre cidade é falar sobre arquitetura, sobre acúmulo e, hoje mais do que nunca, sobre verticalidade. No último século, as cidades, que são produto da cultura humana, tem crescido e se (re)criado de forma a destruir qualquer conexão com a escala humana. Ruas impróprias para pedestres, prédios cada vez mais altos, apartamentos cada vez menores e espaços para o convívio cada vez mais suprimidos. Para um projeto urbano assim, que se pretende cada vez mais faraônico e inabitável, nem o céu parece o limite.
Lampert, no entanto, parece ter algo a dizer sobre isso. Lhe interessa a malha arquitetônica criada pelo acúmulo de fachadas na paisagem urbana. Partindo disso, cria uma série de trabalhos num primeiro momento de natureza mais pictórica para, em seguida, abordar o tridimensional.
Se nossas cidades e seu acúmulo interminável de edifícios em geral são acompanhados de uma infinidade de ruídos visuais, isso não ocorre no trabalho em questão. Conforme experimentava suportes outros que não a fotografia, a artista ia reduzindo essa malha arquitetonica a composições constituídas de linhas e cores puras. Na pintura de paisagem, a linha do horizonte sempre é o elemento nevrálgico. E essa linha, em Lampert, é tortuosa e acidentada, afinal, falamos da cidade. E só esse elemento importa aqui. Ele é a essência da cidade, sua afirmação precípua.
Seus trabalhos tridimensionais são compostos de pequenas peças de concreto coloridas e com recortes pronunciados que encaixam um no outro, produzindo assim a ilusão de um intrincado horizonte urbano. Esse horizonte e essa paisagem, tal qual essas estruturas que os emulam, são de natureza construtiva, como a artista deixa antever nos títulos. Nada disso é aparentemente natural, e é aí que entra um delicado trabalho de cor.
Um horizonte não existe sozinho, ele está sempre em relação a algo. E esse algo, ainda mais quando falamos de um lugar aberto, é o céu. São edifícios e arquiteturas que, cada vez mais altos, se desenham em meio a esse infinito espaço etéreo. Mas o céu não é neutro: produz luzes, sombras e toda a sorte de efeitos atmosféricos e meteorológicos. E os horizontes de Lampert são resultado dessa relação. Em Os Dias e as Horas , essas estruturas de concreto, agrupadas lado a lado, vão apresentando configurações e cores diferentes. Algumas apresentam cores mais claras e frias, como azuis claros e tons acinzentados, outras têm tonalidades mais ocres, terrosas e carregadas. São cores que existem por si na paisagem urbana, mas aqui, nessa poética, elas existem com relação ao céu, a luz e a passagem do tempo presente com o passar do dia e das horas.
Em Composições para dias de Sol e Chuva, trabalho de natureza pictórica, o efeito atmosférico se faz ainda mais presente. Uma sequência de linhas e horizontes tortuosos estão novamente presentes, mas os azuis e cinzas que contém são diáfanos, inundados por uma forte claridade que retém apenas o que eles têm de essencial.
Letícia Lampert nos lembra que a cidade é humana, e por ser humana, é construída, mutável e, porque não, finita. Esse recado, contudo, não vem por meio de uma mensagem pessimista. Por ser a cidade uma construção, pode ser recombinada, repensada, rearranjada. E são possibilidades de rearranjo que Lampert nos oferece. Nessas configurações apresentadas, a relação com o céu, a luz e a atmosfera são essenciais para o melhor posicionamento de horizontes. Se a metrópole urbana contemporânea devora tudo o que está em seu retorno, o trabalho de nossa artista aparece para lembrar que ainda existe espaço para o céu.