9 de agosto de 2023 a 15 de setembro de 2023

Habitar os ciclos, desenhar os dias

Al. Gabriel Monteiro da Silva, 1364

Transbordar o fascínio diante do mínimo acontecimento, fisgar as partículas dos dias, constatar a grandeza de cada movimento do corpo são pactos que Laura Gorski criou para lidar com a implacabilidade do passar do tempo e o perceber como o provocador e o vigilante dos destinos. São esses gestos que constituem as pontes moventes entre o cotidiano e as suas virtudes e tormentos se dissipando pela vida e que povoam a prática diarística nas notas, nos desenhos, nos modos de pensar da artista. Nos últimos três anos, Laura se dedicou a elaborar e a transcriar a aparente estabilidade daquilo que se apresenta como realidade. Em tempos pandêmicos, esse esforço poético insurgiu para reavaliar a estagnação dos dias e para, quem sabe, manter desperto o corpo em sua existên- cia mobilizadora de vida. Laura confiou no que se vive e nas marcas produzidas pelas experiências como uma espé- cie de inseparável plenitude dos tempos (presente, passado, futuro). E se guiou por isso em um percurso em que registrou a espessura das esperas, do que foi feito quase agora, do repouso, do vazio de se fazer ausente e de se fazer ainda mais presente para somente observar as coisas, da proliferação de tarefas, das escolhas do que fazer logo em seguida.

Na mostra Habitar os ciclos, desenhar os dias, Laura apresenta trabalhos que fazem dialogar os paradoxos desses verbos e seus predicados, que, aqui, se fazem numa rima multitemporal. Habitar comumente sugere uma ação de permanência e estabilidade. Em seus trabalhos, Laura nos propõe o habitar como um exercício de movimento, que só é possível se um corpo é abrigo-casa-casca e que segue se modificando até findar ciclos e começar outros nova- mente e ao mesmo tempo. Como desenho, as ações da artista podem ser compreendidas como produções de um agora que se reifica tanto no desfolhar do calendário quanto na autonomia do instante de sua fatura. Desenhar os dias é como estar ainda mais presente na cláusula temporal da vida, imantando-se no cotidiano, em suas desven- turas, em suas insignificâncias e, ainda assim, seguir, sem parar nem ultrapassar sua cadência. Mas desenhar também é em sua poética um enraizamento, como se o relato fosse uma apreensão inventada na validade das sensações temporárias do corpo – hic et nunc.

Essas definições experimentais de temporalidades se manifestam de maneiras distintas em “Sussurros noturnos” (2020 – 2021) e em “A forma mais próxima do silêncio é o círculo” (2020 – 2021). No primeiro, a artista mantém um ritmo de desenho pela diferença. Anotações visuais são realizadas e se conectam por contiguidade. Nesse conjun- to de desenhos há afinidades e distinções de formas – círculos, olhos, mãos, triângulos que sugerem símbolos de transcendência, circularidade de acontecimentos, passagem de tempo. É quando desenha cada um desses relatos de sussurros que Laura se entrega e se expõe a uma instância instintiva e descompromissada do fazer artístico, para mantê-lo como acontecimento real. Cheios, vazios, autocontenções, pequenas expansões se mobilizam nesse jogo misterioso de imagens. Em “A forma mais próxima do silêncio é o círculo”, a artista se impõe um método e, ao longo de um ano, desenha círculos com pigmentos que extrai de alimentos e de elementos da paisagem que coleta no seu cotidiano. Cada desenho guarda a data, a matéria-prima e o lugar onde foi feito. São detalhes de uma história, ali o tempo fica, se pereniza e ganha cor. Cada círculo desenhado tem cor e textura diferentes, pois adere ao papel e acontece com a umidade, com a temperatura e com a dinâmica do gesto da artista naquele dia.

Importante para esta mostra é destacar o corpo de Laura não apenas como autor/agente dos desenhos, mas em sua presença visual. Em “Nascer de si” (2020) e na série “Corpo-folha” (2021), a artista experimenta a textura da terra, a delicadeza de folhas aplicadas ao papel, a tinta acrílica e o nanquim. Nessa convivência de materiais, Laura avista o seu corpo e o reproduz em cenas de anatomia, em que corpo e folha se comprometem em uma ambiência de indissociabilidade. Assim como em “Trança” (2021), registro fotográfico de uma ação em que a artista faz um caminho de folhas que partem de sua cabeça e se espalham pelo chão. Na série “Flora” (2023), terra, folhas e flores também convivem na presentificação de uma mulher grávida que performa movimentos: em pé, sentada, sopran- do, apontando para o céu, articulando-se, expandindo-se para fazer caber um outro ser vivo. Nessa série, dentro e fora extrapolam suas fronteiras: corpo criador e corpo em criação de si e de outro.

Olhar meditativo, restauração das corrosões, testemunha do que ainda está por vir – é nessa confluência dos tempos e de suas diferenças de ritmos que a artista produz ficções visuais sobre os ciclos da vida, como o dia e a noite, a mudança de estações, a gestação, inspirar-espirar, a alimentação, o digerir e os espasmos e os sopros fisiológicos. Se conseguirmos testemunhar essas naturezas de tempo que Laura nos convida a habitar, talvez possamos nos conectar à potência desmedida de transformação do cotidiano e a uma de suas intrínsecas carac- terísticas: não se agarra o tempo, vive-se o tempo.

Galciani Neves Julho de 2023

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