Tecendo Detritos
Dentre os avanços obtidos pelas revoluções industriais, a obtenção de materiais indestrutíveis e atraentes, como o plástico, foi um dos principais. Longe de ser apenas funcional, ele dá origem a toda uma profusão de produtos e embalagens de produtos de gigantesco apelo estético, comercial e fetichista. Projetado para suportar toda e qualquer adversidade natural, pode sobreviver intacto por séculos nas mais adversas condições. Todavia, embora construído para ser, em relação a escala humana, eterno, acaba sendo imediatamente descartável e se convertendo em lixo, que se acumula pelas ruas, rios, oceanos e esgotos mundo afora, causando uma catástrofe ecológica sem precedentes.
Se para a sociedade em geral esses materiais são absolutamente descartáveis, para a artista Valéria Rocchiccioli a situação ganha outro ponto de vista. Com formação também em desenho industrial, ela encontra na durabilidade e complexidade desse tipo de produção oriunda de nossa sociedade ultra industrializada a matéria prima para o seu trabalho. A princípio abstratas e enigmáticas, suas construções são altamente conectadas com a sociedade que as gerou (e descartou). A artista segue a risca o seu princípio de não comprar a sua matéria prima, que consiste em plásticos, papéis, metais, fios e outros que, sistematicamente, recolhe de vizinhos, amigos, escolas, estabelecimentos comerciais, restaurantes, fábricas e muitos outros, conferindo-lhes um destino diferente do lixo. A partir dessa imensa quantidade de dejetos do antropoceno por ela recolhidos, a artista busca construir esculturas, objetos e colagens. Embora parta de materiais industriais, seu procedimento construtivo é praticamente o de uma costureira, que a partir desses detritos vai tecendo uma infinidade de formas. Se sua matéria prima é produzida em escala industrial e quase sempre de maneira seriada, não é o que ocorre com seus trabalhos, que quase nunca são idênticos e cuja forma final é na maior parte das vezes tão orgânica quanto imprevisível. Curvilíneas, espraiadas, de aparência mole e por vezes fugaz, suas obras são como movimentos e cenas da natureza, seja o movimento da água, seja uma forma ou um aspecto semelhante ao de um animal. Se na natureza tais manifestações estariam fadadas a desaparecer (em questão de alguns segundos ou anos), através da costura de detritos de Rocchiccioli elas acabam eternizadas, tal como os materiais que as compõem.
Texto por Theo Monteiro